2 de junho de 2019

Agradece o Beijo || Ana Zanatti


Agradece o Beijo, de Ana Zanatti. Um livro que me deixou num estado entre a alienação, a estupefacção e a vontade de chorar. Um livro que mais parece uma cascata de emoções que nos cai alma abaixo, que nos adentra e nos acorda.

O palco da narrativa desta obra é o Estado Novo, esse período cinzento e conspurcado da nossa história. Acompanhando a vida de Luísa e da sua família e meio envolvente, tomamos consciência da repressão que imperava neste país à beira-mar plantado, onde deus, pátria e família eram o mantra, onde as mulheres eram violentadas, humilhadas e caladas e onde a diferença não era permitida. Ao longo destas páginas, tomamos consciência da sociedade embrutecida que fomos (ou somos?), das ilusões fabricadas pela máquina de fazer aparências, pelos crimes perpetuados no seio das altas patentes e escondidos e embrulhados pelo restante país que fecha os olhos a tudo o que incomoda. Um estado que de novo tinha muito pouco, assente nas atrocidades escondidas e na desumanização para com os mais fracos.

À parte toda esta densidade, descrita de forma magistral por Ana Zanatti, é impossível não criarmos laços com as personagens femininas deste livro: Luísa, filha de um político fascista, intragável, misógino, cheio de fantasmas e perversidades por dentro; Constança, mão de Luísa e esposa submissa e humilhada que vive num mundo de medo, lutando contra a sua própria voz; Vitória e Maria Eugénia, duas irmãs livres num tempo de prisões, que conseguem pensar mais além, fazer mais além, amar contra todas as regras impostas pelos homens; e Emanuel (ou Íman), que nasceu no corpo errado e que não desiste de fazer cumprir o propósito da sua alma e tornar-se mulher. Personagens apaixonantes, que se me colaram à pele, uma espécie de amigas imaginárias com as quais me via a tomar chás de tarde e a debater questões sociais.

Há livros assim, que nos deixam um travo de revolta e vazio. Revolta por saber que muito do que aqui está escrito é verdade. E vazio porque me custou dizer adeus a todas estas mulheres, deixá-las eternamente nestas páginas.

Além de tudo isto, ao longo deste livro, vamos também reflectindo sobre o curso da vida, sobre as decisões que tomámos, sobre o esquecimento ao qual nos abandonámos, sobre a criança que nasceu sábia dentro de nós, e que lá permanece, embora esquecida, registando tudo o que nos acontece, tudo o que nos molda e nos magoa e nos faz bem, sussurrando-nos ao ouvido é por aqui ou é por ali, tantas vezes ignorada e remetida ao plano da loucura, apesar de tudo saber. E, para terminar, deixo-vos com esta frase belíssima e que encerra em si tudo aquilo que escrevi:

Todos transportamos numa cavidade recôndita uma criança silenciada, mas viva, à espera de se fazer ouvir, ainda que seja só quando a velhice chegar. Essa criança não murcha, não perde cor nem memória, não cria rugas nem perde a folha, por muito que a queiramos esconder e ignorar. Um dia, há sempre um dia, ela amarinha por nós e vem perguntar: lembras-te, lembras-te?

Muito obrigada à Porto Editora por me ter proporcionado esta leitura tão, tão boa.

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